sexta-feira, dezembro 24

As três Marias: revirando o baú escolar

No ano de 1991 encerrava a 1ª etapa do ensino fundamental, antes denominado primário. Da 2ª à 4ª série estudei numa escola religiosa, Instituto Farina, dirigida por freiras católicas, muitas delas italianas. Minhas professoras, nesse período, foram todas Marias. Maria da Paz, Maria de Jesus e Maria. Esse ciclo de três anos hoje é por mim referenciado carinhosamente como o ciclo das Três Marias.

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Ao editar esse texto - que já havia sido publicado na íntegra -, perdi seu conteúdo restante (95%). Pode ser que me esforçe para reescrevê-lo algum dia. Fiquei quase depressivo diante da perda. Mas aprendi, não confio mais nesse editor do blog!

terça-feira, novembro 30

SOBRE O RECENTE PROTESTO CONTRA A UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Em protesto ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), publicado desde 2007 no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie contra o PL 122/2006 (conhecido como “lei anti-homofobia”), um grupo de ativistas organizou uma manifestação no dia 24 de novembro de 2010, por volta das 18h, em frente à universidade. Com previsão de mais de três mil participantes, o evento contou somente com cerca de 400, que se postaram diante dos portões da instituição, na Rua Itambé. Em seguida, o grupo deslocou-se do Mackenzie para a Avenida Paulista com um número já bastante reduzido, conforme anunciado por diversos veículos de comunicação como a Globo News, a Folha de São Paulo, a CET, o site da UOL e dezenas de outros sites informativos. Na universidade, as aulas transcorreram normalmente.


A oposição da IPB ao projeto de lei se baseia não só no senso comum e em análises jurídicas especializadas (que consideraram o projeto “inconstitucional”), mas sobretudo nos princípios cristãos que norteiam tanto a denominação quanto o Mackenzie. Não há novidade nisso: quando se matriculam na instituição, os alunos assinam o contrato de serviços educacionais, em que há uma cláusula explicando esse caráter confessional. Isso não significa perseguição a quem não subscreve essas bases cristãs, muito pelo contrário: não há registro na história da universidade de casos de discriminação de qualquer tipo, seja contra alunos homossexuais, seja contra alunos que professam outras religiões, ou nenhuma. Todos têm acesso aos mesmos benefícios, como bolsas de estudo.


No entanto, desde o momento em que a publicação do texto da IPB no site do Mackenzie foi “descoberta” pelos ativistas neste ano, a igreja, a universidade e a pessoa de seu Chanceler têm sido duramente atacados e acusados de “homofobia”. Filmados em vídeo, os manifestantes pediam a demissão do Chanceler, cuja foto foi estampada em diversos sites homossexuais acompanhada de palavras de ódio. A virulência que caracterizou essas expressões de indignação, mesmo antes da aprovação do projeto, confirma o quanto é perigoso que a sociedade se veja refém de uma minoria militante, que procura impor seus pontos de vista por meio de pressão e difamação, não admitindo que pessoas, igrejas e organizações cristãs simplesmente afirmem ser a conduta homossexual um pecado.


Para detalhar melhor sua postura bíblica — que se fundamenta no amor, não no separatismo, e prega o respeito a todos —, cristãos que partilham da mesma visão sobre o homossexualismo se uniram para elaborar o manifesto “Universidade Mackenzie: Em Defesa da Liberdade de Expressão Religiosa”. O texto foi reproduzido em cerca de oito mil sites cristãos e conservadores, recebendo mais de 36 mil citações na internet. Traduzido para idiomas como alemão, espanhol, francês, holandês e inglês, foi postado em sites de diversos países estrangeiros, como Estados Unidos, França, Alemanha e Portugal. Centenas de manifestações de solidariedade à postura do Mackenzie foram veiculadas em diversos meios, inclusive no conhecido blog de Reinaldo Azevedo (articulista da revista Veja), um dos comentaristas políticos mais lidos e respeitados do país. Respondendo às acusações de “homofobia” com argumentos sólidos e bíblicos, os cristãos creem que sua postura contribuiu para que a manifestação de repúdio ao documento da IPB tenha recebido tão pouca adesão do público.


Nós, cristãos, estamos alegres e gratos por todo o apoio recebido e pelas orações do povo de Deus em favor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e de seu Chanceler, o Rev. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Instamos o povo de Deus a que se una também em súplicas e intercessões para que o Deus todo-poderoso derrame seu Espírito Santo sobre a igreja evangélica neste país. Necessitamos com urgência de um avivamento, de forma que o Cristo crucificado seja exaltado, os crentes sejam santificados, a Escritura Sagrada seja pregada com liberdade, pecadores se convertam e nosso país seja transformado, para a glória do Deus trino da graça.


Este pronunciamento é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

sexta-feira, novembro 19

UNIVERSIDADE MACKENZIE: EM DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA

A Universidade Presbiteriana Mackenzie vem recebendo ataques e críticas por um texto alegadamente “homofóbico” veiculado em seu site desde 2007. Nós, de várias denominações cristãs, vimos prestar solidariedade à instituição. Nós nos levantamos contra o uso indiscriminado do termo “homofobia”, que pretende aplicar-se tanto a assassinos, agressores e discriminadores de homossexuais quanto a líderes religiosos cristãos que, à luz da Escritura Sagrada, consideram a homossexualidade um pecado. Ora, nossa liberdade de consciência e de expressão não nos pode ser negada, nem confundida com violência. Consideramos que mencionar pecados para chamar os homens a um arrependimento voluntário é parte integrante do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Nenhum discurso de ódio pode se calcar na pregação do amor e da graça de Deus.

Como cristãos, temos o mandato bíblico de oferecer o Evangelho da salvação a todas as pessoas. Jesus Cristo morreu para salvar e reconciliar o ser humano com Deus. Cremos, de acordo com as Escrituras, que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Somos pecadores, todos nós. Não existe uma divisão entre “pecadores” e “não-pecadores”. A Bíblia apresenta longas listas de pecado e informa que sem o perdão de Deus o homem está perdido e condenado. Sabemos que são pecado: “prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, rivalidades, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias” (Gálatas 5.19). Em sua interpretação tradicional e histórica, as Escrituras judaico-cristãs tratam da conduta homossexual como um pecado, como demonstram os textos de Levítico 18.22, 1Coríntios 6.9-10, Romanos 1.18-32, entre outros. Se queremos o arrependimento e a conversão do perdido, precisamos nomear também esse pecado. Não desejamos mudança de comportamento por força de lei, mas sim, a conversão do coração. E a conversão do coração não passa por pressão externa, mas pela ação graciosa e persuasiva do Espírito Santo de Deus, que, como ensinou o Senhor Jesus Cristo, convence “do pecado, da justiça e do juízo” (João 16.8).

Queremos assim nos certificar de que a eventual aprovação de leis chamadas anti-homofobia não nos impedirá de estender esse convite livremente a todos, um convite que também pode ser recusado. Não somos a favor de nenhum tipo de lei que proíba a conduta homossexual; da mesma forma, somos contrários a qualquer lei que atente contra um princípio caro à sociedade brasileira: a liberdade de consciência. A Constituição Federal (artigo 5º) assegura que “todos são iguais perante a lei”, “estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença” e “estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. Também nos opomos a qualquer força exterior – intimidação, ameaças, agressões verbais e físicas – que vise à mudança de mentalidades. Não aceitamos que a criminalização da opinião seja um instrumento válido para transformações sociais, pois, além de inconstitucional, fomenta uma indesejável onda de autoritarismo, ferindo as bases da democracia. Assim como não buscamos reprimir a conduta homossexual por esses meios coercivos, não queremos que os mesmos meios sejam utilizados para que deixemos de pregar o que cremos. Queremos manter nossa liberdade de anunciar o arrependimento e o perdão de Deus publicamente. Queremos sustentar nosso direito de abrir instituições de ensino confessionais, que reflitam a cosmovisão cristã. Queremos garantir que a comunidade religiosa possa exprimir-se sobre todos os assuntos importantes para a sociedade.

Manifestamos, portanto, nosso total apoio ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil publicado no ano de 2007 e reproduzido parcialmente, também em 2007, no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie, por seu chanceler, Reverendo Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Se ativistas homossexuais pretendem criminalizar a postura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, devem se preparar para confrontar igualmente a Igreja Presbiteriana do Brasil, as igrejas evangélicas de todo o país, a Igreja Católica Apostólica Romana, a Congregação Judaica do Brasil e, em última instância, censurar as próprias Escrituras judaico-cristãs. Indivíduos, grupos religiosos e instituições têm o direito garantido por lei de expressar sua confessionalidade e sua consciência sujeitas à Palavra de Deus. Postamo-nos firmemente para que essa liberdade não nos seja tirada.

Este manifesto é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

sábado, novembro 6

Bancos fortes, púlpitos fracos

O sistema expositivo-sequencial (lectio continua) é um dos modelos de pregação desenvolvido ao longo da história e talvez até possa ser dito que não está entre os mais adotados e apreciados pelas igrejas evangélicas ao redor do mundo. E, para assombro de muitos aferrados defensores dele hoje em dia, nem pode ser dito que esse modelo é bíblico no sentido de ser requerido explicitamente nas Escrituras (cf. Dr. Augustus Nicodemus).
Mas fico a pensar: quantos pregadores poderiam juntar-se ao Apóstolo Paulo ao final de uma etapa ministerial e declarar, tal como ele fez no reencontro com seus presbíteros de Éfeso: "jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus" (At. 20.27).
Quantos pregadores poderiam dizer hoje: jamais conduzi-me no púlpito de maneira coagida, aceitando subornos verbais, diretos ou velados; jamais flertei com a insepulta tesoura de T. Jefferson, que sempre extraía aquelas seções da Bíblia que não lhe agradavam; jamais sucumbi à pressão dos que não suportam a sã doutrina, que procuram fazer-me um mestre ao gosto de suas próprias cobiças, que determinam o que querem ouvir, que sentem coceira nos ouvidos (II Tm. 4.3)?
Lamentavelmente, o espírito de nossa época não é diferente daquele descrito pelo Dr. Lloyd-Jones há quase 50 anos, onde bancos fortes dominam púlpitos fracos, conforme ele bem configurou no seu clássico “Pregação e Pregadores”.
Ultimamente não tenho escondido minha indisposição e indigestão com outros  estilos, com pregadores que, em nome da "relevância", salteiam suas pregações, salpicam exposições domingo após domingo (hoje Efésios, domingo próximo Jeremias, depois I João...), tornando suas congregações reféns dos temas do momento, das necessidades "atuais", ou que vez ou outra não resistem e entregam aqueles mal camuflados sermões de carapuça.
É preciso cautela para não empacotar todos os pregadores não-sequenciais na descrição acima, como se todos estes fossem expositores astutos e de má índole, obstinados e firmes em sua resolução de não se adequar ao modelo aqui esposado. Reconheço em muitos piedade verdadeira e apreço pelas Escrituras, temor genuíno, pastoreio amável, enfim, conduta aprovável e que em nada desabona o caráter que Cristo vindica deles. Não, não são lobos vorazes ou enganadores de fora e de dentro (At. 20. 29-30; Mt. 24.24).
Não, minha indisponibilidade auditiva não se volta para estes pregadores. Muitos entre eles só não abraçam o sistema sequencial porque lhes falta exposição ao mesmo. Não tiveram a oportunidade de se confrontar com os grandes pregadores expositivos. Com formações precárias ou com pouco acesso a boa literatura reformada em seus rincões pastorais. São dignos de minha consideração. É preciso ter apreço por esses pregadores e evangelistas, leigos, itinerantes, apaixonados pela causa de Cristo, evangelistas incansáveis.
Sim, sonego acolhida para com os de resistência deliberada, que se escondem atrás da “relevância”.
Não é meu propósito historicizar a mudança, mas é a partir dos excessos subjetivistas e secularizados dos avivamentos dos séculos XVIII e XIX que se institucionaliza o primado da descontinuidade expositiva, das idéias e temas em detrimento dos livros bíbli­cos, reveladores agora de uma homi­lé­tica frag­men­tada, sem linearidade.
Não sou pregador no sentido estrito do termo, muito longe disso. Tenho tido, porém, o grande privilégio, não menor que a pesada responsabilidade, de expor a Palavra como professor numa igreja que abraçou a exposição sequencial tanto no currículo adulto da EBD quanto no púlpito. Ali há espaço para temas e ideias, mas os temas e ideias dos escritores bíblicos, expostos em aulas e sermões sequenciais.
Penso que minha identificação com o sistema expositivo-sequencial é muito mais uma aspiração, uma aproximação temerosa, do que propriamente uma adequação a ele. De uma coisa, contudo, tenho segurança para dizer: sei reconhecer um bom sermão expositivo.
Louvo a Deus pela vida e fidelidade ministerial de meu pastor, e de tantos outros ministros reformados que não enchem o povo de vãs esperanças, das visões de seus corações e sim daquilo que vem da boca do Senhor (Jr. 23.16); que anunciam todo o testemunho de Deus (I Co. 2.1); que não se conformam com este século e com seu pragmatismo defensor de resultados a todo custo (Rm. 12.2); que creem na suficiência das Escrituras e de sua eficácia para ensinar, repreender, corrigir, educar na justiça (II Tm. 3.16); que estão convictos de que é pela pregação que os eleitos serão alcançados (Rm. 10.14-15; Jn. 3.5; Mt. 21.32; Jo. 2.23, 4.41; At 2.41, 13.48, 17.34); que não se reconhecem como importantes e decisivos para que os resultados aconteçam (I Co. 3.7), que sabem que são constituídos de matéria frágil, reconhecem-se vasos de barro, para que toda excelência seja divina (I Co. 4.7); que acreditam que sempre haverá crentes nobres e ávidos pela Palavra, examinadores diários dela, como os crentes de Beréia (At. 17.11); que estão certos de que encontrarão crentes tessalonicenses, que recebem a Palavra não como palavra de homens, “e sim como, em verdade é, a Palavra de Deus” (I Ts. 2.13); que aceitam que a Escritura tem um tempo, sim, e este tempo não é o tempo dos homens, e sim o tempo de Deus, pois a Sua Palavra jamais volta vazia e sempre faz o que lhe apraz e prosperará naquilo para o que Ele designou (Is. 55.11). Não foi Ele mesmo quem disse: "Não é a minha palavra fogo, diz o SENHOR, e martelo que esmiúça a penha?" (Jr. 23.29)
A Reforma em nossas igrejas jamais começará, nem tampouco se sustentará, se não partir do púlpito, com homens consagrados e cativos à Palavra. Púlpitos fortes, bancos fortes!

quarta-feira, outubro 27

Já que somos brasileiros...

Acompanhei recentemente uma discussão acalorada via e-mail sobre brasilidade e xenofobia, sobre auto-imagem e alteridade, sobre como nos definimos a partir da relação com o outro, nesse caso, o estrangeiro. Não resisti à (tácita) provocação e teci as considerações que agora publico com algumas leves modificações. Minha maior preocupação não é o mérito da questão em si, mas chamar atenção para os filtros que balizam as discussões.




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Bem, penso que devemos amar nosso país e desenvolver corretos sentimentos pátrios e cívicos para com ele. Contudo, por mais inflamada que seja a nossa afeição ou patriotismo, jamais podemos turvar nossa visão e leitura da realidade social com estigmas e rotulações acríticas. Nessa direção, duas atitudes devem ser evitadas: (a) nem a adoção da auto-imagem caricata, carregada que é daquelas atitudes depreciadoras e reforçadoras do patente sentimento de grande parte dos brasileiros de que somos os meninos órfãos do sistema global e que, muitas vezes, até sorrimos e contamos vantagem de "nossa" famosa malandragem, do "nosso"  jeitinho, da "nossa" indolência e "descontração" para com o trabalho e a vida; (b) nem, de outro lado, alimentando um ufanismo cego e romântico, que minimiza os contrastes e que não problematiza as feridas abertas e não tratadas de nossa sociedade, desasjustada socialmente como é.


Creio que poucos de nós teriam a coragem de subscrever as palavras do controverso estudioso da cultura brasileira, Gilberto Freyre, quando de sua passagem pela Inglaterra em meados de 1920, logo após concluir seu mestrado em Colúmbia, EUA, e após visitar alguns países europeus. Ele estava encantado com a vida inglesa. Escreveu uma carta sublime do ponto de vista literário ao seu amigo, o diplomata brasileiro nos Estados Unidos àquela época, Oliveira Lima. Eis um trecho:
 "Esta é a minha segunda semana em Oxford, onde, aliás, já sinto que estou 'at home". Vou a 'lectures' sobre literatura, games, clubes, etc. E estou lendo muito - quando sair daqui precisarei dumas férias. Mas quem nasceu para beneditino, há de sempre ser beneditino - principalmente onde o ambiente é congenial.
Os rapazes daqui são encantadores. Quem me está introduzindo aos vários aspectos da 'Oxonian life' é um camarada meu (...) Raro é o dia que não me convida alguém para o chá. O chá aqui é uma arte gentil; e a amizade em torno do pote de chá, outra arte, ainda mais gentil.
Confirma-se em mim, neste meu contato com a vida inglesa, a simpatia que por uma como premonição sempre senti pela Inglaterra. Esse é o povo mais romântico do globo - muito ao contrário da idéia que corre mundo do 'essencialmente prático' como sinônimo de indiferença às cousas gentis.
Parece-me o povo de inteligência mais equilibrada, de vida mais equilibrada. Porque não nasci inglês ou alemão ou americano - não compreendo... Mas já que sou brasileiro vou tratar de ser o melhor possível - do be my best." (Oliveira Lima Papers).

Essa atitude de Freyre resume, para mim, magistralmente, a ambiguidade brasileira a qual indelevelmente todos estamos presos e que nos acompanhará ainda por longas gerações.

Chesterton, o grande ensaísta britânico, certa feita estava se preparando com suas muitas malas para mais uma de suas viagens quando um amigo entrou no seu apartamento - no bairro londrino de Battersea. Perguntado sobre o destino, ele respondeu: "Para Battersea". Com isso queria significar que de onde estava não poderia enxergar Battersea, nem mesmo Londres ou a Inglaterra. Para chegar onde já morava precisava conhecer outros lugares. Nessas viagens, o que buscava não era conhecer propriamente outros países, ainda que isso viesse a reboque, mas o seu lugar, Battersea. O único meio de chegar à Inglaterra é ir para longe dela, completou.

É no confronto com o outro, com o diferente, o estranho, que moldamos, testamos e redefinimos boa parte dos nossos valores, construindo nossa singularidade enquanto sujeitos nesse mundo tão intercambiável.

Bem, apelar finalmente para o equilíbrio - ou visão equilibrada dos fatos - parece uma atitude que não foge muito ao senso comum (os candidatos, por exemplo, o tempo todo nessa campanha eleitoral repetem que temos que ter uma visão equilibrada), mas creio que a expressão de fé reformada (entenda-se, o calvinismo), ajusta nossa percepção da realidade.


Pois, para o verdadeiro calvinista, não cabe apenas dinamitar o mundo, denunciar suas estruturas injustas, excludentes, opressoras, ser pessimista em relação a ele, etc., e só esperar pela redenção, como se Deus não esperasse de nós ações que visam o estabelecimento de seu reino.

É verdade que este estabelecimento não será completo, pois vivemos num mundo afetado pela queda, que desregulou todas as esferas dos relacionamentos a que nos submetemos (o esquema abaixo é do Francis Schaeffer):
- com Deus (o que originou um problema teológico / espiritual; estamos separados Dele e sem Cristo esse relacionamento não pode ser restabelecido);
- com o próximo (o que origina toda sorte de problemas sociais / relacionais; vivemos em conflito uns com os outros e só a orientação e constrangimento do E.S., que nos leva sempre à Palavra, a sua escola (cf. Calvino), para nos balizar quanto ao modo correto de desenvolver as relações interpessoais);
- conosco mesmo (o que origina todos os problemas psicológicos, intrapessoais);
- e com a criação (o que origina todos os problemas ambientais. Vivemos em desequilíbrio, numa relação não sustentável com a criação. Obs.: não utilizo a palavra natureza).


Só a biblicidade do calvinismo ancora e dá subsídios realistas e coerentes que nos ajudam em nossa leitura de mundo, a interpretá-lo com os pressupostos e lentes de Deus.


Lamento quando observo leituras sociais por parte de cristãos não filtradas pela Palavra. Não existe leitura real e independente dos problemas à parte da luz evangélica, bíblica. Nem tampouco podemos rebaixar o nível de nossas ponderações só porque incursionamos em assuntos não-eclesiásticos.

Temos uma tradição belíssima que é o calvinismo, que ajudou a forjar e desenvolver nações inteiras. Nações que hoje lutam a favor da secularização, do ateísmo, da suposta neutralidade religiosa. Que lutam para esquecer os valores e pilares que as ajudaram a constituir-se.

O que deve definir nossa brasilidade e pautar nossa relação com outros países não deve ser o tacanho e simplista "eu nasci aqui e eles lá". Mas a aferição e o cotejamento dos princípios e condutas reguladoras de suas ações que podem, sim, ser emuladas em nosso país.

É verdade que temos que reconhecer as especificidades nacionais. Mas podemos aprender com os bons e maus exemplos das outras nações, adaptando o que for necessário ao nosso contexto.

Enfim, nem o pessimismo-negador-do-mundo que conduz os crentes "espirituais" a se retirarem assepticamente dele,  sem patriotismo ou identificação nacional, sem interação crítica com a cultura, pois não podem se sujar com ela, afinal "há pouca utilidade em revirar uma lata de lixo e ficar sujo apenas para retirar dela uma moedinha" (anabatistas, povo amish, monges medievais e os "falsos" evangélicos "puros" de hoje, etc.), nem otimismo triunfalista - igualmente anti-bíblico, embrião dos milenarismos - que ignora a realidade de que nenhuma nação jamais poderá conquistar plenitude social, cultural ou "espiritual" (ilusão marxista) capaz de se comparar à pátria que esta sendo preparada para os cidadãos celestiais, pois, "na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir." (Hb. 13.14).

quarta-feira, outubro 20

A cumplicidade dos marca-páginas

Os marcadores de página são companheiros inseparáveis. Não recordo exatamente quando essa espécie de fetiche começou, mas remonta-se aos meus primeiros contatos com a leitura.


E com "leitura" me refiro àquela aproximação que se tornou deliberada e progressivamente compulsiva a partir do colegial, em contraponto às chamadas leituras obrigatórias (e necessárias) da vida escolar.

Estar com um livro na mão passou a prescindir desses dois (entes) objetos: o lápis e o marca-página. O ambiente torna-se quase irrelevante. Cama, sofá, banco do ônibus, rede (uma rede...) tanto faz. Mas, sem eles, não parece leitura. É um ver sem ler, ato rebelde, não canônico.


Dos muitos e irrefletidos rituais de minha vida, automáticos, não-conscientes, este talvez seja um dos últimos aos quais encontro coragem para justificar sua solenidade. Não me sinto pronto e devidamente confortável até ter escolhido um marcador à estatura do título que tenho em mãos.


Não necessariamente sou um colecionador. Evidente, contudo, que minha dileção por uns implica em escanteamento de outros. Pobre vida desses enciumados e ainda intocados marcadores.


Mas os velhos marcadores... Quase todos surrados, amarelados; alguns por certo que suplicando por outros ares. Nunca consultados. Suspeitosos a princípio, capitulam totalmente após a virada da página 30.


Confidentes de tantos autores, peregrinos de tantas páginas, cúmplices dos mais ambíguos sentimentos e reações. Ecléticos, passeiam entre autores de tantas culturas e nacionalidades. Iconoclastas, não frequentam páginas coloridas e ilustradas. Quadrinhos! Revistas! Nem pensar: honra inviolável. Agora, se este gênero se estender à arte de gênios como Will Eisner e Art Spiegelman, passeio liberado.


Fiéis protetores da boa literatura, seja lá o que isso signifique para outros leitores.


Ah, esses marcadores ampliam, e como ampliam, meu círculo de amigos. São interlocutores nas "conversas silenciosas" com os amigos vivos e com os amigos mortos, ambos, no entanto, perenizados através da atemporalidade de seus escritos, definidora, sim, do que convencionou-se chamar de clássico.