quarta-feira, outubro 27

Já que somos brasileiros...

Acompanhei recentemente uma discussão acalorada via e-mail sobre brasilidade e xenofobia, sobre auto-imagem e alteridade, sobre como nos definimos a partir da relação com o outro, nesse caso, o estrangeiro. Não resisti à (tácita) provocação e teci as considerações que agora publico com algumas leves modificações. Minha maior preocupação não é o mérito da questão em si, mas chamar atenção para os filtros que balizam as discussões.




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Bem, penso que devemos amar nosso país e desenvolver corretos sentimentos pátrios e cívicos para com ele. Contudo, por mais inflamada que seja a nossa afeição ou patriotismo, jamais podemos turvar nossa visão e leitura da realidade social com estigmas e rotulações acríticas. Nessa direção, duas atitudes devem ser evitadas: (a) nem a adoção da auto-imagem caricata, carregada que é daquelas atitudes depreciadoras e reforçadoras do patente sentimento de grande parte dos brasileiros de que somos os meninos órfãos do sistema global e que, muitas vezes, até sorrimos e contamos vantagem de "nossa" famosa malandragem, do "nosso"  jeitinho, da "nossa" indolência e "descontração" para com o trabalho e a vida; (b) nem, de outro lado, alimentando um ufanismo cego e romântico, que minimiza os contrastes e que não problematiza as feridas abertas e não tratadas de nossa sociedade, desasjustada socialmente como é.


Creio que poucos de nós teriam a coragem de subscrever as palavras do controverso estudioso da cultura brasileira, Gilberto Freyre, quando de sua passagem pela Inglaterra em meados de 1920, logo após concluir seu mestrado em Colúmbia, EUA, e após visitar alguns países europeus. Ele estava encantado com a vida inglesa. Escreveu uma carta sublime do ponto de vista literário ao seu amigo, o diplomata brasileiro nos Estados Unidos àquela época, Oliveira Lima. Eis um trecho:
 "Esta é a minha segunda semana em Oxford, onde, aliás, já sinto que estou 'at home". Vou a 'lectures' sobre literatura, games, clubes, etc. E estou lendo muito - quando sair daqui precisarei dumas férias. Mas quem nasceu para beneditino, há de sempre ser beneditino - principalmente onde o ambiente é congenial.
Os rapazes daqui são encantadores. Quem me está introduzindo aos vários aspectos da 'Oxonian life' é um camarada meu (...) Raro é o dia que não me convida alguém para o chá. O chá aqui é uma arte gentil; e a amizade em torno do pote de chá, outra arte, ainda mais gentil.
Confirma-se em mim, neste meu contato com a vida inglesa, a simpatia que por uma como premonição sempre senti pela Inglaterra. Esse é o povo mais romântico do globo - muito ao contrário da idéia que corre mundo do 'essencialmente prático' como sinônimo de indiferença às cousas gentis.
Parece-me o povo de inteligência mais equilibrada, de vida mais equilibrada. Porque não nasci inglês ou alemão ou americano - não compreendo... Mas já que sou brasileiro vou tratar de ser o melhor possível - do be my best." (Oliveira Lima Papers).

Essa atitude de Freyre resume, para mim, magistralmente, a ambiguidade brasileira a qual indelevelmente todos estamos presos e que nos acompanhará ainda por longas gerações.

Chesterton, o grande ensaísta britânico, certa feita estava se preparando com suas muitas malas para mais uma de suas viagens quando um amigo entrou no seu apartamento - no bairro londrino de Battersea. Perguntado sobre o destino, ele respondeu: "Para Battersea". Com isso queria significar que de onde estava não poderia enxergar Battersea, nem mesmo Londres ou a Inglaterra. Para chegar onde já morava precisava conhecer outros lugares. Nessas viagens, o que buscava não era conhecer propriamente outros países, ainda que isso viesse a reboque, mas o seu lugar, Battersea. O único meio de chegar à Inglaterra é ir para longe dela, completou.

É no confronto com o outro, com o diferente, o estranho, que moldamos, testamos e redefinimos boa parte dos nossos valores, construindo nossa singularidade enquanto sujeitos nesse mundo tão intercambiável.

Bem, apelar finalmente para o equilíbrio - ou visão equilibrada dos fatos - parece uma atitude que não foge muito ao senso comum (os candidatos, por exemplo, o tempo todo nessa campanha eleitoral repetem que temos que ter uma visão equilibrada), mas creio que a expressão de fé reformada (entenda-se, o calvinismo), ajusta nossa percepção da realidade.


Pois, para o verdadeiro calvinista, não cabe apenas dinamitar o mundo, denunciar suas estruturas injustas, excludentes, opressoras, ser pessimista em relação a ele, etc., e só esperar pela redenção, como se Deus não esperasse de nós ações que visam o estabelecimento de seu reino.

É verdade que este estabelecimento não será completo, pois vivemos num mundo afetado pela queda, que desregulou todas as esferas dos relacionamentos a que nos submetemos (o esquema abaixo é do Francis Schaeffer):
- com Deus (o que originou um problema teológico / espiritual; estamos separados Dele e sem Cristo esse relacionamento não pode ser restabelecido);
- com o próximo (o que origina toda sorte de problemas sociais / relacionais; vivemos em conflito uns com os outros e só a orientação e constrangimento do E.S., que nos leva sempre à Palavra, a sua escola (cf. Calvino), para nos balizar quanto ao modo correto de desenvolver as relações interpessoais);
- conosco mesmo (o que origina todos os problemas psicológicos, intrapessoais);
- e com a criação (o que origina todos os problemas ambientais. Vivemos em desequilíbrio, numa relação não sustentável com a criação. Obs.: não utilizo a palavra natureza).


Só a biblicidade do calvinismo ancora e dá subsídios realistas e coerentes que nos ajudam em nossa leitura de mundo, a interpretá-lo com os pressupostos e lentes de Deus.


Lamento quando observo leituras sociais por parte de cristãos não filtradas pela Palavra. Não existe leitura real e independente dos problemas à parte da luz evangélica, bíblica. Nem tampouco podemos rebaixar o nível de nossas ponderações só porque incursionamos em assuntos não-eclesiásticos.

Temos uma tradição belíssima que é o calvinismo, que ajudou a forjar e desenvolver nações inteiras. Nações que hoje lutam a favor da secularização, do ateísmo, da suposta neutralidade religiosa. Que lutam para esquecer os valores e pilares que as ajudaram a constituir-se.

O que deve definir nossa brasilidade e pautar nossa relação com outros países não deve ser o tacanho e simplista "eu nasci aqui e eles lá". Mas a aferição e o cotejamento dos princípios e condutas reguladoras de suas ações que podem, sim, ser emuladas em nosso país.

É verdade que temos que reconhecer as especificidades nacionais. Mas podemos aprender com os bons e maus exemplos das outras nações, adaptando o que for necessário ao nosso contexto.

Enfim, nem o pessimismo-negador-do-mundo que conduz os crentes "espirituais" a se retirarem assepticamente dele,  sem patriotismo ou identificação nacional, sem interação crítica com a cultura, pois não podem se sujar com ela, afinal "há pouca utilidade em revirar uma lata de lixo e ficar sujo apenas para retirar dela uma moedinha" (anabatistas, povo amish, monges medievais e os "falsos" evangélicos "puros" de hoje, etc.), nem otimismo triunfalista - igualmente anti-bíblico, embrião dos milenarismos - que ignora a realidade de que nenhuma nação jamais poderá conquistar plenitude social, cultural ou "espiritual" (ilusão marxista) capaz de se comparar à pátria que esta sendo preparada para os cidadãos celestiais, pois, "na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir." (Hb. 13.14).

quarta-feira, outubro 20

A cumplicidade dos marca-páginas

Os marcadores de página são companheiros inseparáveis. Não recordo exatamente quando essa espécie de fetiche começou, mas remonta-se aos meus primeiros contatos com a leitura.


E com "leitura" me refiro àquela aproximação que se tornou deliberada e progressivamente compulsiva a partir do colegial, em contraponto às chamadas leituras obrigatórias (e necessárias) da vida escolar.

Estar com um livro na mão passou a prescindir desses dois (entes) objetos: o lápis e o marca-página. O ambiente torna-se quase irrelevante. Cama, sofá, banco do ônibus, rede (uma rede...) tanto faz. Mas, sem eles, não parece leitura. É um ver sem ler, ato rebelde, não canônico.


Dos muitos e irrefletidos rituais de minha vida, automáticos, não-conscientes, este talvez seja um dos últimos aos quais encontro coragem para justificar sua solenidade. Não me sinto pronto e devidamente confortável até ter escolhido um marcador à estatura do título que tenho em mãos.


Não necessariamente sou um colecionador. Evidente, contudo, que minha dileção por uns implica em escanteamento de outros. Pobre vida desses enciumados e ainda intocados marcadores.


Mas os velhos marcadores... Quase todos surrados, amarelados; alguns por certo que suplicando por outros ares. Nunca consultados. Suspeitosos a princípio, capitulam totalmente após a virada da página 30.


Confidentes de tantos autores, peregrinos de tantas páginas, cúmplices dos mais ambíguos sentimentos e reações. Ecléticos, passeiam entre autores de tantas culturas e nacionalidades. Iconoclastas, não frequentam páginas coloridas e ilustradas. Quadrinhos! Revistas! Nem pensar: honra inviolável. Agora, se este gênero se estender à arte de gênios como Will Eisner e Art Spiegelman, passeio liberado.


Fiéis protetores da boa literatura, seja lá o que isso signifique para outros leitores.


Ah, esses marcadores ampliam, e como ampliam, meu círculo de amigos. São interlocutores nas "conversas silenciosas" com os amigos vivos e com os amigos mortos, ambos, no entanto, perenizados através da atemporalidade de seus escritos, definidora, sim, do que convencionou-se chamar de clássico.